Dez Teses para a Universidade Brasileira
Glauco Arbix
A Universidade brasileira está mais do que nunca convidada a aprofundar e refinar sua sintonia com os esforços do País na busca do desenvolvimento. Erra, no entanto, quem acredita ingenuamente que essa missão é assumida com tranqüilidade pela comunidade acadêmica. No mundo todo a universidade enfrenta enormes dificuldades para desempenhar os novos papéis a que tem sido chamada. Num certo sentido, vive imersa em um grande paradoxo: centro produtor por excelência de conhecimento novo, encontra-se despreparada para dar conta da explosão de conhecimento que transforma ensino e pesquisa, ciência e tecnologia, assim como todos os processos de inovação que sacodem as sociedades no mundo todo.
O conhecimento sempre ocupou lugar de destaque na história da humanidade, é certo. Mas a realidade de hoje é muito distinta do passado longínquo e também de vinte ou trinta anos atrás. A emergência de um mundo em que a informação e o conhecimento são produzidos, articulados e oferecidos de um modo novo, em gigantescos volumes e com enorme rapidez, questiona os limites, a atuação e o modo de produção universitária. Sua missão, estrutura, organização e funcionamento mostram-se inadequados e pedem remodelagem institucional, alteração de hábitos e liberdade para o florescimento de novos centros de dinamismo, uma vez que as relações (i) no interior das Universidades, (ii) entre as Universidades, (iii) entre a Universidade e as Empresas, (iv) entre a Universidade e o País, assim como (v) entre a Universidade e o Mundo, estão imersas em enorme tensão.
As nações e suas economias são cada vez mais moldadas pelos avanços do conhecimento, o que abre novas oportunidades e coloca novos desafios para todos os países, avançados ou emergentes. Competidores diretos do Brasil, como a China e a Índia, armam-se para facilitar a transição para um novo paradigma de desenvolvimento, em que o conhecimento ocupa lugar central na produção e reprodução das suas relações econômicas e sociais. Como não poderia deixar de ser, nessa situação, Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação estão no coração das novas estratégias competitivas. E o Brasil? Até que ponto avançamos nessa direção? Qual é a qualidade da contribuição acadêmica para a transformação do país? Para além dos discursos de ocasião, como se dá a reflexão acadêmica sobre a Academia? Estamos abertos para acolher e estimular as novas gerações de pesquisadores e de saberes? As novas malhas e articulações? Ou a entrar em sintonia fina com os esforços do país para livrar-se do atraso secular?
De um modo geral, a resposta é Não. Na maior parte das vezes não temos preparo e nem agilidade para a mudança. Muitas vezes sequer queremos mudar. Mas no mundo rico e diversificado da universidade, há muita mudança e transformação. Essa é a riqueza maior que deve ser cultivada com carinho. Pois fornece alento e apoio para o reordenamento institucional que deve nortear a Universidade brasileira hoje. Para isso, expomos dez teses. Intencionalmente, questões-chave como salários, carreiras e mesmo financiamento da atividade acadêmica de pesquisa, ensino e aprendizagem foram deixadas para outro momento.
Tese 1: Novas Alianças
Os novos fluxos de conhecimento e a natureza atual da produção científica questionam as fronteiras tradicionais da Academia. A estrutura e as redes de produção de conhecimento invadiram as áreas mais remotas das sociedades. Criaram novos ambientes – e não apenas laboratórios –, novos agrupamentos e comunidades que diversificaram a produção de conhecimento. Além de centro produtor e difusor de conhecimento novo, a Universidade brasileira está chamada a multiplicar as alianças intelectuais, dentro e fora do ambiente acadêmico.
Tese 2: Remodelagem Institucional
O arco das disciplinas continua sendo peça chave para a pesquisa. O mesmo não ocorre com a estrutura de Departamentos. As “caixinhas departamentais” reforçam a visão da Universidade como arquipélago e dificultam sua ação institucional. Estão ossificadas. Jogam contra a articulação dos saberes. Resistem às novas dimensões do conhecimento e às redes interdisciplinares.
Tese 3: Programas Interinstitucionais
A mobilidade docente e discente entre universidades é cada vez mais fundamental. No Brasil a mobilidade docente é quase inexistente. E a discente baixa. Para avançar na miscigenação de saberes, é preciso permitir, facilitar e estimular o trânsito de alunos professores entre Universidades brasileiras, assim como potencializar e ampliar os programas de intercâmbio no Exterior.
Tese 4: Mão Dupla
As empresas estão no centro das atenções dos países avançados e dos nossos concorrentes mais próximos. Se antes a cooperação universidade-empresa era importante, hoje é vital. Para as empresas e para a universidade. Para as empresas porque a Universidade ajuda a elevar sua competitividade. Para a universidade porque oxigena suas artérias. Foi-se o tempo em que o conhecimento fluía apenas da universidade para a sociedade.
Tese 5: Pesquisa de Padrão Mundial
Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação são peças essenciais nas estratégias de desenvolvimento. Para participar desse esforço, a Universidade brasileira deve perseguir uma Pesquisa de Classe mundial. Isso significa dotar-se de mecanismos de estímulo à melhoria da qualidade do ensino e da pesquisa, assim como de aferição, acompanhamento e avaliação permanente. A elaboração de indicadores de inovação e qualidade permite a comparabilidade internacional e a análise da trajetória nacional ao longo do tempo. A busca e a utilização dos padrões mais avançados, do saber e dos sensores de fronteira deve ser preocupação permanente e generalizada.
Tese 6: A Todo Vapor
O Brasil possui aproximadamente 3 mil instituições de ensino superior, 24 mil cursos de graduação e 3 mil de pós-graduação stricto senso. De 1996 e 2006 o País praticamente duplicou o número de matrículas em mestrado e doutorado e mais do que triplicou o número dos que completam esses cursos. Avançamos, é certo. Mas é possível e necessário avançar muito mais no acesso e na qualidade das nossas instituições. Atualmente, apenas 11% dos jovens entre 18 e 24 anos estão matriculados em cursos superiores, um dos mais baixos da América Latina. A Universidade, em especial a pública, deve se reordenar para estabelecer claramente seu compromisso de elevar o padrão de acesso assim como a qualidade da pesquisa, ensino e aprendizagem.
Dados da CAPES, porém, indicam também problemas de natureza distinta do acesso. Mais de 40% dos alunos de pós-graduação (mestrado e doutorado) em 2006 estavam matriculados na área de ciências humanas e sociais aplicadas, enquanto que apenas 8,8%, 8,5%, 14,3%, 16% e 10,4% estavam matriculados, respectivamente, em ciências exatas e da terra, ciências biológicas, engenharias e informática, ciências da saúde e ciências agrárias. Se comparados aos de 1987, com exceção das ciências humanas, sociais aplicadas e ciências da saúde, todos os demais percentuais apresentaram redução. Entre os doutores, os dados indicam que houve pequena oscilação positiva nas áreas de exatas, biológicas, engenharias, informática e saúde. A única exceção foi nas ciências agrárias, em que houve expressivos avanços. Ou seja, é verdade que nos últimos 20 anos foi enorme a expansão da pós-graduação. Mas, em grande medida, o crescimento se deu em áreas do conhecimento pouco expressivas para o avanço da inovação tecnológica. Não se trata de desprezar o potencial para o desenvolvimento da área de humanas. O problema aqui é de outra ordem, e diz respeito à capacidade do País de sustentar sua atividade econômica em todos os níveis, sem a qual não haverá desenvolvimento.
Tese 7: Transparência
A Universidade tem a obrigação de transferir para a sociedade os frutos de sua atividade acadêmica. Para tanto, deve respirar e transpirar autonomia, que também é o oxigênio do pesquisador. No entanto, autonomia não pode ser biombo nem plataforma para o corporativismo e o enclausuramento conservador. A Universidade não está acima nem fora da sociedade. A prestação transparente de suas contas, a exposição cristalina de seus investimentos e a utilização judiciosa dos recursos públicos são obrigações de uma Universidade que deseja o avanço do conhecimento e a transformação da sociedade.
Tese 8: Meritocracia
A promoção por tempo de casa e os benefícios por antiguidade são avessos á competição saudável que deve existir na geração de conhecimento novo. A introdução de sistemas meritocráticos para nortear remuneração, carreiras e promoções é fundamental para o salto de qualidade que a Universidade brasileira – em especial a pública – declara querer.
Tese 9: Universidade Sem Fronteiras
A construção de novas articulações e redes de conhecimento deve ser a marca de uma Universidade que se repensa e moderniza. A diversificação de suas relações expõe uma instituição aberta e sem fronteiras. Em todas as suas dimensões, seja estadual, regional, nacional e internacional. A construção de uma Rede Mundial de Pesquisadores brasileiros, posicionados em centros de pesquisa pelo mundo afora, pode ser instrumento revitalizador da Universidade. Sua contribuição para o desenvolvimento nacional, enquanto pesquisadores no exterior, pode abrir um novo capítulo na história do pensamento científico brasileiro. A USP poderia ser a sede do portal Brasil-Global.
Tese 10: Sintonia com o País
Em todo o mundo a Universidade está convidada á repensar sua institucionalidade, missão e operação. Está chamada a se redefinir e se adaptar às mudanças. A manutenção de sua autonomia é chave para a geração de conhecimento novo. A questão primordial que está colocada para a comunidade acadêmica é a de aumentar a relevância econômica e social da sua agenda de pequisa. Não é o Estado nem os governos que devem interferir na sua agenda de pesquisa. Mas é a comunidade acadêmica que deve questionar e repensar sua própria pauta e a relevância de sua ação para o desenvolvimento do País.
[1] Professor Livre Docente do Depto. de Sociologia, FFLCH. Coordenador do Observatório da inovação do IEA-USP. Membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.